Dia Mundial da Consciencialização do Autismo
Estranha forma de vida
Escreveu e cantou Amália que, “por vontade de Deus”, vivia numa “tal ansiedade”, da qual, só desistindo de acompanhar o coração, se libertaria. Esta morte era, obviamente, metafórica, pois a fadista pertencia, já em 1962, ao grupo daqueles “que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”, como escrevera e cantara Camões em finais de Quinhentos. Mas não houve lei que os libertasse da ansiedade antes de o corpo confirmar a sua irreversível finitude.
Que sofrimento, pensará o leitor! De facto, confirma-o a Psicologia. E de direito, pois a ansiedade é comum aos humanos. Em momentos de incerteza, de angústia ou de impaciência. Mas que dizer da possibilidade de os níveis de ansiedade dispararem para “tal ansiedade” por razões casuais, como o simples contacto com ruído, luzes, cheiros fortes, texturas de roupa, ou a presença de desconhecidos, a simples mudança de espaço físico ou até o facto de o nosso habitual lugar numa sala de aula já estar ocupado?
É mais fácil compreender “tal ansiedade” em Amália ou Camões? Sim! Mas a verdade é que há, pelo menos, 50.000 portugueses que a ela estão expostos, com maior ou menor frequência. E existem estudos internacionais que apontam incidências de um caso entre cada 50 ou 70 pessoas. Falamos de perturbação do espectro do autismo (PEA). E fazemo-lo no âmbito do Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, que se celebra a 2 de abril.
O autismo não é uma doença, mas uma perturbação em termos de desenvolvimento neurológico, que afeta os rapazes numa proporção quatro a cinco vezes superior à das raparigas, e que tem múltiplas manifestações, associadas à comunicação (não compreensão do sentido figurado), relação com o outro (dificuldades em termos de empatia, de compreender a circunstância do outro), de desenvolvimento motor (falta de coordenação motora), por comportamentos repetitivos (desenvolver atividades quotidianas sempre da mesma maneira, qual ritual).
A nível escolar, há crianças com PEA que revelam profundos problemas de aprendizagem, mas também existem casos de excecional capacidade para aprender, de autênticos génios. Quer num caso, quer noutro, são crianças com necessidade de medidas de suporte à aprendizagem em função das suas condições específicas. São crianças que veem e interagem com o mundo de uma forma singular, sem compreenderem que outros o possam fazer de forma diferente.
Cabe, por isso, aos neurotípicos, (aqueles que não exibem traços de autismo ou de outra condição neurológica atípica) perceberem a mundivisão da criança com PEA e não o contrário. É a escola e o currículo que se adaptam à criança. É a família que se adapta à criança. É a sociedade que garante a individualidade, os direitos e a ausência de “tal ansiedade” à criança, oferecendo-lhe a oportunidade de se libertar da lei da morte através de “feitos valerosos” (em função das suas condições específicas).
Penitenciando-me por desfigurar a perfeição poética de Régio, sabemos por onde vamos e sabemos que vamos por aqui. Ou, qual coração que Amália não quis seguir, deviríamos uma “estranha forma de vida”!
Vítor Tomé, Pai